Comissão JPIC: Justiça e paz e integridade da criação

Para instaurar a discórdia e suscitar a guerra, é preciso inventar algo a temer, criar uma cultura do “medo” em torno de uma referência qualquer, capaz de sensibilizar e convencer as pessoas; como exemplo disso tomamos a cor vermelha. A Cor Litúrgica das Celebrações dos Mártires da Igreja é o vermelho. Nesse contexto religioso, a memória que se faz nos remete à consciência de que entre os primitivos cristãos e também ao longo da história da humanidade até os dias de hoje, os posicionamentos daqueles que são fiéis aos princípios cristãos e dão testemunho da verdade, os colocam em situação de risco que converge para o sacrifício da própria vida. São pessoas que lutam pelo que é justo e pela paz. Sabemos que não pode haver paz onde não há justiça. Em inúmeras passagens da Bíblia, encontramos menções à justiça e à paz, que estão sempre associadas. Dentre essas passagens, temos Isaías 32, 17-18:
 
“A justiça produzirá a paz e o direito assegurará a tranquilidade; meu povo habitará em mansão serena, em moradas seguras, em abrigos tranquilos”.
 
Por quê, então, sentir medo de quem luta por justiça e paz?
 
Os doutores da Lei, os fariseus e demais autoridades temiam Jesus exatamente por isso. Ele se compadecia de todos, auxiliava a todos e se cercava de homens rudes, não-letrados que, inspirados pelo Espírito Santo, abençoados e santificados, ousaram iniciar uma mudança radical com a Evangelização, o anúncio da Boa Nova de Jesus: Deus é amor!
 
Se Deus é amor e perdoa, o arrependimento sincero reordena nossas vidas e todos têm chance de alcançar a misericórdia divina. O controle dos judeus daquele tempo sobre as pessoas, na forma impiedosa que eles o exerciam, ficou destituído de autoridade moral, eles não espelhavam em suas vidas e em suas práticas religiosas a Verdade. Por isso crucificaram Jesus, precisavam eliminar a referência autêntica da Verdade que ele era naquele momento histórico. O Mestre, Nosso Senhor, aos olhos das autoridades religiosas e políticas da época, era alguém que pregava e vivia o que dizia, realmente executava o que ensinava.
 
A crucifixão era reservada para criminosos e se constituía uma forma ignominiosa de morte, sob tortura insuportável. Era tradição daquele tempo nunca mais ninguém pronunciar o nome de um crucificado. Sua memória era banida, como se não tivesse existido, como se não tivesse nem parentes nem amigos. Os judeus que planejaram a morte do Cristo tinham por objetivo não somente a sua morte, mas, sobretudo, o esquecimento, que sua memória fosse banida da história do povo judeu. Essa construção do banimento eterno do Cristo não aconteceu, no entanto. Jesus foi anunciado no Velho Testamento que converge, todo, em sua esperança, para o Cristo: ele era realmente o Messias esperado pelos judeus, entretanto, sua autoridade e poder legítimos não foram reconhecidos pelas lideranças da época. Nesse aspecto, Isaías em 32,4-7, esclarece a diferença entre as lideranças vãs, egoístas e cruéis do mundo e a liderança do Cristo:
 
“Os espíritos insensatos se disporão a compreender, e a língua dos gagos falará prontamente e com clareza; não mais se qualificará de nobre ao perverso, nem de grande o trapaceiro. Porque o insensato profere loucuras e seu coração dá-se ao mal; comete impiedades, forma sobre o Senhor conceitos errôneos, deixa o faminto queixar-se de sua miséria, priva da bebida àquele que tem sede. As intrigas do trapaceiro são desleais, ele maquina desígnios criminosos para perder os humildes com mentiras, e o pobre que faz valer seu direito; o fidalgo, porém, tem pensamentos dignos, e um procedimento nobre”.
 
Se olhamos para um pequeno cartaz com a Cor Litúrgica dos Mártires e a sigla JPIC e sentimos medo ou repulsa, o que nos condicionou a isso e por quê? Diante disso, convém meditarmos no amor de Jesus que atende o coração de pai do chefe da Sinagoga e simplesmente diz à sua filha, que estava sendo velada como morta: -“Menina, levanta”. (Mc 5,41).
 
E nós, como agimos diante dos “mortos e caídos” do mundo?
Jesus era o Cristo vivo naquele tempo e prossegue sendo, ele é o Filho de Deus que se apresentou a São João Evangelista, dizendo:
 
“Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Àquele que tem sede, eu lhe darei a beber gratuitamente da fonte da água da vida”. (Ap 21,6)
Dará de beber àquele que tem sede de quê? De Justiça e de Paz!
Jesus é Deus que está no meio de nós para saciar essa nossa sede. Mas nós precisamos contribuir, formar esse meio, precisamos estar juntos e unidos em oração continua, em diálogo permanente, em ação fraterna, solidária, constante. A paz pode não ser a tônica do mundo, mas, a nossa harmonia pode edificar a paz entre nós e promover, a partir de nós, pela graça de Deus, a justiça para todos. Isso é evangelizar!
 
Não é com violência que se combate e se luta pela prevalência do direito, é com o recurso da oração e da caridade. Se houver consciência crítica e autocritica, se cada um assumir a sua responsabilidade, mesmo na profunda diversidade religiosa e na imensa diversificação ideológica da humanidade, será possível instaurar a justiça e seu fruto, a paz. Desta maneira, o sofrimento alheio sempre nos afetará e também não teremos coragem de impor sofrimento a ninguém. O convite à omissão, à intolerância, à violência, à impiedade não encontrará ressonância em nossos corações como encontrou no coração da multidão que escolheu para ser liberto, Barrabás, culpado e responsável por muitos crimes. Sem o discernimento que a oração e a perseverança no desejo de viver uma vida digna nos proporcionam, a multidão decidiu crucificar Jesus, inocente e responsável por muitas curas e por sua pregação que, cumprida à risca, instaura o Reino de Deus e sua justiça no mundo.
 
Jesus ama a sua Igreja. A sua Igreja somos nós! Quando nos dirigimos a ele, quando o buscamos, precisamos estar muito atentos a tudo isso. A multidão que crucificou Jesus se revela sempre presente no tempo histórico. Ela sempre está disponível e sendo chamada a cooperar na crucificação de povos, de etnias, de segmentos que se configuram com suas identidades, em situação de pobreza, de risco, como alvo de inúmeros preconceitos e de toda classe de violência para com a vida, inclusive o meio ambiente, toda a criação. Precisamos sim, orar e refletir, nos esclarecer e agir para que possamos perceber com nitidez, a nossa incoerência.
 
A quem nos aliamos, no que cremos, o que fazemos, que responsabilidades assumimos ao cumprirmos nosso papel de cristão e de cidadão no mundo?
 
Se estivermos contribuindo para o sofrimento alheio de forma impiedosa, se a nossa opção for de imposição da morte física ou de uma sobrevivência indigna, que implica em morte psicológica na qual o indivíduo é destituído de sua humanidade, impedido de existir com sua identidade no mundo, então, precisamos rever a nossa espiritualidade, precisamos ajustar o conceito de cristandade que temos ao que Jesus propôs, exemplificou e vivenciou até doar a própria vida por todos nós. Nesse sentido, ele fez valer, com absoluta coerência, o versículo 11 do Salmo 85:
“Misericórdia e fidelidade se encontram,
justiça e paz se abraçam”.
 
O salmista clamou: “Mostra-nos tua misericórdia, ó Yahweh, / e concede-nos a tua salvação”.
Clamou, mas se dispôs a ouvir o que Deus solicita, que sejamos justos em nossa convivência e que sejamos fiéis aos princípios que abraçamos:
“Vou ouvir o que Yahweh Deus diz, / porque ele fala de paz / ao seu povo e aos seus fiéis, /para que não voltem à insensatez”.
 
O que é esse estado de insensatez? É a negação do amor, da misericórdia, da prática da alteridade; é o não reconhecimento da dignidade de todo ser humano; é a prevalência do egoísmo, da exploração que lesa o meio ambiente e vidas humanas; é a difusão de inverdades que justificam essa insensatez e toda sorte de maldades que são identificáveis por sua violência, descaso e omissão, que geram evidente sofrimento para alguém ou para milhares de pessoas.
 
O salmista também anuncia: “Sua salvação está próxima dos que o temem, / e a glória habitará em nossa terra”. Para os que respeitam a Deus e se apiedam dos seus semelhantes e zelam pela integridade da criação, a libertação do mal está em curso, essa realidade torna-se perceptível. Como e por qual razão?
 
O salmista esclarece: “Misericórdia e fidelidade se encontram, / justiça e paz se abraçam”. A misericórdia é o amor de Deus manifestado, é Jesus no meio de nós. Jesus cumpriu os desígnios divinos, foi fiel ao Pai. Toda a promessa, tudo o que foi anunciado sobre ele foi executado, vivido fielmente. A justiça é divina quando seu fruto é a paz.
 
O salmista se refere ao Cristo Crucificado quando diz: “Da terra germinará a fidelidade, / e a justiça se inclinará do alto céu. / O próprio Yahweh dará a felicidade, / e a nossa terra produzirá o seu fruto”. Onde grassa o amor e a piedade, onde a coerência cristã é vigente, não existe miséria nem sofrimento. A dor do mundo, a dor da maioria das pessoas atesta essa nossa incoerência. Ainda somos capazes de nos sentirmos felizes apesar de tanto sofrimento e de lutarmos exclusivamente pelo bem-estar da nossa família, da nossa classe socioeconômica, dos que pensam como nós, dos que têm os mesmos interesses e as mesmas convicções que fundam nossa forma de ser e de estar no mundo.
 
O salmista nos recorda João Batista e afirma a retidão do Cristo, descrevendo o exemplo que um indicou e o outro nos legou: “A justiça caminhará à sua frente, / e com seus passos traçará um caminho”.
 
Reside nesse Salmo uma riqueza espiritual essencial para nós, ele é um cântico do discernimento que nos ajuda a compreendermos o que Jesus nos disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim.” (Jo 14,6).
 
Articular esses três elementos, caminho – verdade – vida, requer discernimento, o fruto do discernimento é a coerência. Para caminhar com Jesus no seu caminhar, precisamos enxergar a verdade que ele propõe e exemplifica e, por conseguinte, compreender a vida que ele é e que o anima, ele nos faz vivos e nos anima também. Não somos “mortos” que matam, nosso discurso e nossa prática não pregam nem agem de forma violenta. Um falso cristão ou um falso profeta, uma liderança irresponsável engana milhares de pessoas. Mas não engana a Deus, porque realmente, a conquista da paz e o galardão da justiça, somente se opera por meio da fidelidade, do cumprimento do mandamento que Jesus nos deixou.
 
O Cristo disse: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto conhecerão que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros”. (Jo 13, 34-35).
 
Esse momento inolvidável foi registrado por São Joao Evangelista, o quadro histórico dessa passagem é a Santa Ceia. Recomendamos a leitura de tudo o que São Joao anotou e ressaltamos ainda, a consolação que Jesus ofereceu aos apóstolos ali presentes e a nós, os ausentes que viriam séculos depois…
 
“Em verdade, em verdade vos digo: haveis de lamentar e chorar, mas o mundo se há de alegrar. E haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza se há de transformar em alegria. Quando a mulher está para dar à luz, sofre porque veio a sua hora. Mas, depois que deu à luz a criança, já não se lembra da aflição, por causa da alegria que sente de haver nascido um homem no mundo. Assim também vós: sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria.” (Jo 16, 20-23).
 
Mais adiante, nessa passagem grandiosa, após uma reedição sintética do Sermão da Montanha, Jesus afirma:
“Referi-vos essas coisas para que tenhais a paz em mim. No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo.” (Jo 16, 33).
 
A vitória de Cristo está no cumprimento da Vontade do Pai e atinge seu ápice na sua morte na Cruz. A salvação da humanidade e a sua Ressurreição são o fruto dessa vitória. A misericórdia de Deus e a fidelidade do Cristo se encontraram… Mas como haveremos de ter paz em Jesus, pregados na Cruz como ele? Pela nossa fidelidade e por nossa perseverança em sermos justos. Os fiéis a Cristo precisam ser justos, o sacrifício pessoal faz parte da vida digna do cristão que luta por justiça para si e para todos. Justiça para todos é a prevalência do bem comum, sempre. Lutar pelo bem comum é uma forma de participação que se denomina política. Ser cristão, portanto, é também um ato político.
 
Ora, se para instaurar a discórdia e suscitar a guerra, é preciso inventar algo a temer, criar uma cultura do “medo” que divide a humanidade, estigmatiza e despreza os que lutam pela justiça, pelo bem comum, orando e buscando ajudar seus semelhantes, para instaurar a concórdia e a paz, basta prosseguir afirmando a cultura do amor.
 
“Será, um governo corrupto, capaz de fazer aliança contigo? Um trono que pratica injustiças em nome da lei?” – indaga o Salmo 94, 20.
 
“Não”! – é a resposta para essa indagação, em João 4, 16: “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele.” É exatamente assim que poderemos afirmar também: “os que em vós confiam, permanecem para sempre na alegria”. Sl 5,12.
 
Permanecem na alegria e caminhando juntos!
 
Rita De Blasiis
Uberaba, 12 de julho de 2021

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